EBT - Escola Brasileira de Tributos | A Eterna Confusão do Fisco Entre Interesse Jurídico e Interesse Econômico Para Fins de Atribuição da Solidariedade do Inciso I do Artigo 124 do CTN
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Direito tributário

A Eterna Confusão do Fisco Entre Interesse Jurídico e Interesse Econômico Para Fins de Atribuição da Solidariedade do Inciso I do Artigo 124 do CTN

Nos termos do artigo 124 do Código Tributário Nacional (“CTN”), a figura da solidariedade consiste na presença de mais de um sujeito passivo em uma mesma relação jurídico-tributária, situação em que ficam todos coobrigados ao pagamento do tributo.

A solidariedade foi instituída pelo legislador com a finalidade de permitir ao credor exigir o cumprimento integral da obrigação de qualquer um dos codevedores, sendo, portanto, nos dizeres do Prof. Paulo de Barros Carvalho, um “expediente jurídico de grande eficácia para atender à comodidade administrativa do Estado, na busca da satisfação de seus interesses” (in Fundamentos Jurídicos da Incidência, 8ª ed., 2010, p. 224).

Contudo, é muito comum ver os Fiscos (Municipais, Estaduais e Federal) confundindo o instituto da solidariedade (artigo 124 do CTN) com o instituto da responsabilidade (disposto nos artigos 129 a 137 do CTN), por meio do qual a responsabilidade pelo crédito tributário é atribuída por lei a uma terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação. Essa confusão, entretanto, pode causar efeitos nefastos, tal como a inclusão de terceiros no polo passivo de atuações sem qualquer respaldo jurídico para isso. Explica-se.

Diferentemente do que algumas Autoridades Fiscais acreditam, a solidariedade não tem por escopo incluir um terceiro no polo passivo da relação jurídico-tributária (visto que tal função é desempenhada pelas regras próprias de responsabilização de terceiros, estabelecidas nos artigos 129 a 137 do CTN), mas, sim, de graduar a vinculação dos sujeitos passivos que já a compõem.

Assim, o que se nota é que a responsabilização de terceiros, cuja vinculação ao fato gerador da obrigação tributária é apenas indireta, dá-se mediante a aplicação das normas construídas a partir dos enunciados dos artigos 129 a 137 do CTN ou por outras regras de mesma natureza que venham a ser editadas pelo legislador, nos termos do artigo 128 do CTN.

Por outro lado, a norma que imputa a solidariedade obriga os sujeitos passivos que já compõem o polo passivo da obrigação tributária ao adimplemento do crédito tributário.

Nesse sentido, o legislador tributário adotou dois critérios para estabelecer o vínculo da solidariedade, quais sejam: (i) a existência de “interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação tributária” (inciso I do artigo 124 do CTN); e (ii) a designação expressa por lei (inciso II do artigo 124 do CTN).

Com isso, o que se vê é que o artigo 124 do CTN, sobretudo no que tange ao seu inciso I, disciplina sobre situações de solidariedade em que há uma potencial multiplicidade de contribuintes que praticam o fato gerador e guardam interesse comum no fato praticado, enquanto a responsabilização (dos artigos 129 a 137 do CTN) é veiculada àquele que não pratica o fato gerador, mas está a ele vinculado indiretamente.

Por conta disso, a opção por um ou outro critério depende, necessariamente, da condição do sujeito passivo, o que remete à interpretação dos incisos I e II do parágrafo único do artigo 121 do CTN, visto que somente poderão revestir a qualidade de “sujeitos passivos”: (i) o contribuinte, que possui “relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador”; ou (ii) o responsável, que guarda vinculação indireta com o fato gerador (visto que não o pratica) e cuja obrigação deverá decorrer de lei.

Considerando que o contribuinte é o sujeito passivo que pratica o fato gerador da obrigação tributária principal, o que se verifica é que o inciso I do artigo 124 do CTN a ele se dirige exclusivamente.

Em outras palavras, somente o contribuinte apresenta interesse na situação que constitui o fato gerador da obrigação tributária – vez que o pratica –, de sorte que será “comum” o interesse partilhado necessariamente entre dois ou mais contribuinte, pois, se o contribuinte é quem possui relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador, então somente ele possuirá interesse nela.

Por outro lado, o responsável não poderá ser considerado, com base no inciso I do artigo 124 do CTN, solidariamente obrigado, visto que, além de não praticar o fato gerador da obrigação tributária em conjunto com o contribuinte, não se situa no mesmo polo da relação jurídica de direito privado utilizada para a definição do fato gerador.

Nesses casos, o estabelecimento do vínculo de solidariedade entre contribuinte e responsável ou entre responsáveis dependerá de expressa previsão legal, conforme preceitua o inciso II do mesmo enunciado –, o que é confirmado pela lição de Regina Helena Costa, ao afirmar que “a lei poderá apontar pessoas que, mesmo não sendo partícipes da situação fática que constitua a hipótese de incidência tributária, respondam solidariamente pelo débito. A justificativa para isso está no fato de que essas pessoas assumem a responsabilidade solidária em virtude de outro vínculo jurídico, deflagrado pela prática de ato ilícito”. (in Curso de Direito Tributário, 2ª ed., 2012, p. 211).

Nesse sentido, inclusive, é a lição de Caio Augusto Takano ao elucidar que “o ‘interesse comum’ somente exsurgirá entre pessoas que estiverem no mesmo polo que constitui o fato jurídico tributário, i.e., quando ‘mais de uma pessoa concorre na situação que constitui o fato gerador da obrigação principal’”, o que “pressupõe que todos os sujeitos passivos da obrigação tributária tenham concorrido para a realização do fato jurídico tributário” (in Em Busca de um Interesse Comum: Considerações acerca dos Limites da Solidariedade Tributária do Art. 124, Inc. I, do CTN – RDTA nº 41, 2019, pp. 85-118).

É nesse sentido que deve ser interpretada a expressão “interesse comum” mencionada pelo inciso I do artigo 124 do CTN: sua configuração se dá quando duas ou mais pessoas, revestindo a condição de contribuintes, encontram-se no mesmo polo da relação jurídica privada e, consequentemente, no mesmo polo da relação jurídico-tributária.

Deste modo, o “interesse comum” do inciso I do artigo 124 do CTN não é qualquer interesse que permite a deflagração do vínculo de solidariedade, mas, sim, aquele exclusivamente jurídico, de modo que os interesses de ordem econômica, moral ou social são irrelevantes para fins tributários.

A despeito disso, não é incomum se deparar com autuações em que o Fisco se vale de alegações de interesses outros, sobretudo de ordem econômica, para aplicar a solidariedade de que trata o artigo 124, inciso I, do CTN, o que é absolutamente equivocado. É o que se verifica, por exemplo, em autuações envolvendo alegações de suposto conluio para prática de fraudes fiscais, nas quais o Fisco sustenta que os sujeitos passivos teriam se beneficiado economicamente pela ausência de pagamento do tributo em cobrança pelo contribuinte.

Ocorre que, ainda que tais alegações sejam verídicas, elas não justificam, por si só, a aplicação da solidariedade de que trata o artigo 124, inciso I, do CTN, na medida em que, como visto, a invocação de tal dispositivo somente é permitida se ambos os sujeitos estiverem na condição de contribuintes do tributo em cobrança.

Nessa esteira, o exemplo clássico mencionado pela doutrina e pela jurisprudência de aplicação correta do artigo 124, inciso I, do CTN se refere à cobrança de IPTU de coproprietários de determinado imóvel. Veja-se, nessa situação, a invocação do artigo 124, inciso I, do CTN se mostra adequada porque ambos os proprietários são contribuintes do IPTU do imóvel e, assim sendo, possuem interesse comum jurídico no fato tributário.

Assim sendo, não é adequado que o artigo 124, inciso I, do CTN seja invocado de forma indiscriminada pelo Fisco para trazer ao polo passivo terceiros que não estão na condição de contribuinte do tributo cobrado.

Tal entendimento, frise-se, é confirmado pelo ensinamento da doutrina, como se vê, por exemplo, da manifestação (i) de Maria Rita Ferragut, ao consignar que, “para que haja interesse comum é necessário que duas ou mais pessoas encontrem-se no mesmo polo da relação de direito privado, e, por serem co-obrigadas ao pagamento do débito, estejam também no mesmo polo passivo da relação jurídica tributária” (in Responsabilidade Tributária e o Código Civil de 2002, 2ª ed., 2009, p. 69), e (ii) de Regina Helena Costa, ao lecionar que “[a] solidariedade tributária, que é sempre passiva, somente pode existir entre sujeitos que figurem nesse polo da relação obrigacional” (in Curso de Direito Tributário, 2ª ed., 2012, p. 210).

Por conta disso, o Superior Tribunal de Justiça (‘STJ”), quando do julgamento do Recurso Especial (“REsp”) nº 884.845/SC, manifestou-se no sentido de que “[a] solidariedade passiva ocorre quando, numa relação jurídico-tributária composta de duas ou mais pessoas caracterizadas como contribuintes, cada uma delas está obrigada pelo pagamento integral da dívida”, visto que “o interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal implica que as pessoas solidariamente obrigadas sejam sujeitos da relação jurídica que deu azo à ocorrência do fato imponível”, pois “feriria a lógica jurídico-tributária a integração, no pólo passivo da relação jurídica, de alguém que não tenha tido qualquer participação na ocorrência do fato gerador da obrigação” e, por conta disso, “o interesse qualificado pela lei não há de ser o interesse econômico no resultado ou no proveito da situação que constitui o fato gerador da obrigação principal, mas o interesse jurídico, vinculado à atuação comum ou conjunta da situação que constitui o fato imponível”.

Deste modo, e afastando as recorrentes confusões cometidas por Autoridades Fiscais, tem-se que, para que haja a atribuição da solidariedade do inciso I do artigo 124 do CTN, faz-se necessária a existência de interesse jurídico comum entre contribuintes, visto serem eles (os contribuintes) que realizam o fato gerador.

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Sobre a autora:

Michelle Cristina Bispo Romano é Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, com extensão em Contabilidade pelo IBET; bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Advogada em São Paulo; e-mail para contato: michelle_bispo@hotmail.com.

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