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Direito tributário

A maturidade constitucional-tributária como antídoto a propostas imprudentes

O cenário pós-pandêmico intensificou a necessidade premente de repensar o sistema tributário brasileiro. A busca por recursos adicionais para custear gastos sociais tornou-se uma prioridade evidente, trazendo à tona as deficiências do sistema tributário do país, que é conhecido por sua complexidade excessiva, um obstáculo para alcançar os objetivos fundamentais de equidade e eficiência, configurando, frequentemente, um empecilho ao ambiente de negócios.

As propostas em discussão, como a PEC 45 e a PEC 110, endossam a ideia de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) único, ou dual, como solução para as distorções causadas pelo sistema tributário atual. O debate tem se concentrado na tributação sobre o consumo, enquanto questões relacionadas à tributação da renda e da folha salarial ficam em segundo plano. No entanto, essa abordagem não deve negligenciar as complexidades do federalismo brasileiro.

Em uma outra perspectiva, não podemos perder de vista que o sistema federativo do Brasil envolve uma divisão de competências tributárias entre os diferentes níveis de governo. A autonomia dos governos para arrecadar recursos próprios é um fator-chave nesse contexto. Governos que não têm essa autonomia acabam submetendo suas agendas às influências de níveis de governo superiores ou, em alguns casos, até de entidades privadas com capacidade de financiamento.

A questão da autonomia, nesse sentido, acaba se tornando crucial, pois os governos que podem se autofinanciar por meio de recursos próprios também têm a capacidade de definir suas próprias agendas. Isso decorre em grande parte da extensão em que detêm autoridade efetiva sobre recursos tributários e fiscais. Por outro lado, a falta de autonomia para obter recursos para financiar suas atividades pode levar à submissão a influências externas, comprometendo a capacidade de governos estaduais e municipais de atender às necessidades de suas comunidades.

Há, ainda, um outro fato que se observa quando se analisa o federalismo brasileiro, em que governos locais, especialmente em âmbito municipal, contam com recursos para atender às demandas de seus cidadãos, mas dispõem de autonomia limitada na definição de seus gastos públicos, uma vez que suas políticas públicas são financiadas por meio de transferências vinculadas, como se observa nas áreas da saúde e educação. Muitas dessas áreas, inclusive, são orientadas por “diretrizes” expedidas pela União, que configuram verdadeiras amarras à autonomia política dos Estados e Municípios.

O sistema tributário brasileiro é o reflexo da complexa interação entre política, economia e sociedade ao longo da história do país, sendo moldado significativamente pelas sucessivas constituições. A análise da evolução desse sistema ao longo das constituições brasileiras revela uma jornada de mudanças na distribuição de competências tributárias e na busca por um equilíbrio entre os entes federativos.

A esse respeito, o federalismo fiscal no Brasil passou por diversas fases de evolução, influenciadas por mudanças nas Constituições do país. Essas mudanças conformaram o sistema de distribuição de competências tributárias e a alocação de recursos entre os entes federativos.

Inicialmente, a Constituição de 1891 marcou a transição da monarquia para a república no Brasil e estabeleceu as bases do federalismo no país. Nesse contexto, o governo central detinha a competência privativa para instituir o imposto de importação, bem como em relação aos direitos de entrada, saída e estadia de navios e sobre taxas de correios e telégrafos, enquanto os estados possuíam a autonomia para decretar impostos sobre exportação, sobre imóveis rurais e urbanas, sobre transmissão de propriedades, sobre indústrias e profissões, além da possibilidade de fixarem impostos municipais. Essa divisão de competências tributárias entre a União e os estados resultou em uma estrutura tributária complexa, com uma multiplicidade de impostos vigentes em todo o território nacional.

A Constituição de 1934, por sua vez, introduziu mudanças significativas na distribuição de competências tributárias. Nesse contexto, os municípios foram contemplados com a competência para instituir impostos exclusivos, ampliando a base tributária no nível municipal. Nesse desenho, os Estados passaram a dispor da competência para decretar o imposto de vendas e consignações (sendo-lhes vedado a instituição de impostos de exportação em transações interestaduais), ao passo que Municípios poderiam decretar o imposto de licenças, imposto predial e territorial urbano, imposto sobre diversões públicas e imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais, além de taxas sobre serviços municipais. Fundamentalmente, essas mudanças visavam fortalecer as finanças municipais e descentralizar a arrecadação de impostos. Uma outra novidade da Constituição de 34 refere-se à repartição de impostos entre os distintos níveis federativos. Assim, ainda que a competência residual para instituir impostos não existentes permanecesse compartilhada da União com Estados, se estes a exercessem, deveriam entregar 30% do produto da arrecadação à União e 20% ao Município em que se tenha originado a arrecadação; além disso, o imposto (estadual) de indústrias e profissões, seria repartido, meio a meio, com os municípios.

Em seguida, a Constituição de 1937 manteve, em grande parte, as disposições tributárias da constituição anterior. Pode-se destacar, entretanto, que os Estados deixaram de deter a competência privativa para tributar o consumo de combustíveis de motor de explosão, enquanto que os Municípios perderam a competência para tributar a renda das propriedades rurais. Além disso, a competência residual passou a ser exclusiva dos Estados sem, contudo, haver previsão de repartição de receitas. com uma pequena alteração na competência estadual em relação ao imposto de exportação, que foi transferido para a União.

Com a Constituição de 1946, pode-se dizer que houve estabilidade na distribuição das competências tributárias. O sistema tributário permaneceu caracterizado por uma divisão entre União, estados e municípios. No entanto, houve uma ampliação da gama de tributos municipais, incluindo o imposto sobre atos de economia ou assuntos de sua competência e o imposto de indústrias e profissões, antes de competência estadual. A competência residual voltou a ser compartilhada da União com os Estados, que deveriam entregar 20% do produto da arrecadação à União e 40% aos Municípios. Em relação à vinculação das receitas, 60% da arrecadação dos impostos federais sobre combustíveis, minerais e energia elétrica deveriam ser distribuídos para os Estados e Municípios, bem como 10% da arrecadação federal do Imposto de Renda para os municípios e 40% do total da arrecadação desse imposto arrecadado pelo Estados para seus respectivos municípios

A reforma tributária de 1965-1967 trouxe uma mudança importante ao transferir a competência para tributar exportações da responsabilidade dos estados para a União. O período altamente autoritário refletiu uma estratégia econômica em que o governo federal assumia a responsabilidade pelo controle do crescimento econômico, centralizando decisões econômicas e usando incentivos fiscais para influenciar o setor privado.  Além disso, a estratégia incluiu a garantia de recursos para estados e municípios, principalmente por meio do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias (ICM), substituto do imposto sobre vendas e consignações, além das transferências intergovernamentais. No entanto, a autonomia fiscal das unidades subnacionais seria limitada para evitar interferência no processo de crescimento, restringindo sua capacidade de legislar sobre o ICM e vinculando os recursos transferidos a gastos alinhados com as metas do governo central. Ao todo, essa reforma criou 3 impostos: Imposto sobre Serviços (municipal), Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio, Seguros, Títulos e Valores Mobiliários (federal) e o Imposto sobre Serviços de Transporte e Comunicações (federal). Houve também a fusão dos impostos de transmissão – inter vivos e causa mortis – no ITBI – Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis, em âmbito estadual.

A Constituição de 1988 trouxe uma mudança na tributação interestadual ao transferir a competência federal para tributar combustíveis, energia elétrica, transportes, minerais e comunicações para os Estados; e, por sua vez, a transferência para instituição do imposto sobre transmissão de bens imóveis dos Estados para os Municípios. Além disso, estabeleceu as maiores alíquotas de transferência constitucional para o Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios, correspondendo, no texto original, a 44%, da arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados e Imposto sobre a Renda.

Desse modo, a evolução do sistema tributário nas constituições brasileiras demonstra a dinâmica do federalismo brasileiro e a busca por um equilíbrio nas competências tributárias entre os entes federativos. Compreender essa trajetória é fundamental para qualquer discussão sobre reformas tributárias e a estrutura atual do sistema tributário no Brasil. A história das constituições revela a constante adaptação do sistema tributário às necessidades do país e as tentativas de harmonizar as relações entre os entes federativos. Adicionalmente, verifica-se um fator de extrema relevância que é um volume cada vez maior de transferências vinculadas feitas pela União, ao passo que os Estados e Municípios são despidos de sua própria autonomia.

Uma nota relevante é que, após essa Constituição, o sistema tributário brasileiro – no que diz respeito à distribuição das áreas de tributação exclusiva - pouco se alterou, havendo poucas as ocasiões em que a expansão arrecadatória de um nível da federação tivesse como contrapartida a supressão de fontes de outro ente político. As modificações observadas, ao longo do tempo, indicam que houve uma intensificação no montante de transferências intergovernamentais (conjugadas, evidentemente, com uma concentração da União na definição de políticas públicas).

Desta feita, há um grande obstáculo de difícil superação para a modificação das competências tributárias, mediante a supressão de áreas de tributação exclusiva estadual ou municipal, implicando um ônus político extremamente gravoso. A consolidação da estrutura de separação das fontes tributárias, relacionada aos custos organizacionais e estruturais da Fazenda Pública, acrescidos dos custos políticos das alterações, talvez não comportem propostas tão disruptivas como as que se observam. Tendo consciência disso, o legislador federal, prevê a constituição de Fundos bilionários como lastro a essa modificação de competências tributárias federativas, funcionando como verdadeiras “moedas de troca” para a perda da autonomia estadual (uma vez que terão que observar as disposições de Lei Complementar Nacional e diretivas de um Conselho Federativa), e municipal, que perderão a sua principal fonte própria de receita.

Cabe a nós nos perguntarmos se será salutar mais uma medida de centralização de poder em âmbito federal em troca de uma promessa (improvável) de um sistema mais justo e eficiente.

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Referências:

ARRETCHE, Marta. Quem taxa e quem gasta - a barganha federativa no Brasil. Rev. Sociol.Polít., Curitiba, 24, p. 69-85, jun. 2005.

VARSANO, Ricardo. A evolução do sistema tributário brasileiro ao longo do século : anotações e reflexões para futuras reformas. Texto para discussão n. 405. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas.1996

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Sobre o autor:

Daniel Salomão, Auditor-Fiscal da Receita Estadual de Santa Catarina, Mestre em finanças públicas, tributação e desenvolvimento pela UERJ.

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