Dizem que final de ano é um período de esperança. A expectativa de um futuro melhor é alimentada a cada voto de “um feliz ano novo”. Porém, infelizmente, essa expectativa foi frustrada antes mesmo do início do novo ano para muitos contribuintes brasileiros.
Isso, porque, no último dia útil do ano de 2023, o Governo novamente surpreendeu, anunciando a Medida Provisória 1.202/2023, que, dentre outras coisas, volta a onerar a folha de pagamentos. A aludida MP foi editada apenas um dia após ter sido promulgada e publicada, pelo Congresso Nacional, a Lei nº 14.784/2023 que estendia, até 2027, a desoneração da folha de pagamentos para 17 setores da economia.
A ideia da desoneração da folha de pagamentos é reduzir os encargos trabalhistas para setores de intensa mão de obra, dentre os quais se encontram as indústrias têxtil, de calçados, máquinas, equipamentos e proteína animal, construção civil, comunicação e transporte rodoviário. Trata-se, pois, de um incentivo fiscal à geração de empregos em tais setores, que consiste na substituição da contribuição previdenciária patronal incidente sobre a folha de salários pela Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (“CPRB”), que, além de se distinguir pela base de cálculo, também possui alíquotas muito mais brandas.
Com isso, os setores beneficiados que, sem a aludida desoneração, teriam de suportar cerca de 20% em contribuição previdenciária sobre a folha de salários, contavam com uma carga de 1% a 4,5% sobre o faturamento que são exigidos com a desoneração.
Essa desoneração não era novidade aos setores beneficiados. Em verdade, ela surgiu em 2011, com a edição da Medida Provisória nº 540, posteriormente convertida na Lei nº 12.546/2011, que, desde então, vinha sofrendo constantes prorrogações. Porém, com a edição da novel MP nº 1.202/2023, as empresas antes beneficiadas terão de observar as novas regras de tributação já a partir de 1º de abril de 2024.
Segundo consta da MP, a oneração se dará de forma gradual entre 2024 e 2027. As empresas serão segregadas em dois grupos, o que se fará a partir da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) da atividade principal de cada empresa e, a partir daí, sofrerão uma tributação escalonada sobre a folha de salários ao longo desses anos, sendo aplicadas alíquotas que vão de 10% a 17,5% ou de 15% a 18,75%, a depender do grupo.
Embora o Governo tenha anunciado a MP como mais uma forma de atingir o objetivo de déficit zero para 2024, tendo sido ainda sustentado que a extensão da desoneração da folha, até 2027, seria inconstitucional, porque atentaria contra a Emenda Constitucional da Reforma da Previdência, que teria impedido a concessão de novos incentivos tributários por meio do desconto das contribuições que financiam a seguridade social, fato é que, da forma como realizada, a oneração da folha causa grave impacto a preceitos basilares da Constituição.
Primeiramente, a promulgação da aludida MP apenas um dia após a edição da Lei que mantinha, até 2027, a desoneração da folha de salários a determinados setores representa uma grave afronta ao processo legislativo. Isso, porque, a Lei que prorrogava a desoneração havia sido aprovada com expressiva maioria pelo Congresso Nacional, após a derrubada do veto presidencial. Assim, a MP nada mais representa senão a absoluta desconsideração da decisão já tomada pelo Congresso Nacional, portanto, com a aprovação das duas Casas: o Senado Federal e a Câmara dos Deputados.
Vale lembrar, outrossim, que, a teor do artigo 62 da Constituição Federal, as medidas provisórias carregam em si a ideia de medidas de urgência e relevância nacional, de modo que sua utilização deve ser feita com parcimônia, em casos excepcionais. Porém, o que se viu, no caso, foi a utilização da MP como forma de subverter a soberania das decisões do Congresso Nacional. Mas não é só.
Além disso, muitos especialistas estão afirmando que, considerando que a principal razão apresentada pelo Governo para voltar a onerar a folha de pagamento seria buscar atingir o déficit zero para 2024, o que se notaria é que a MP, em verdade, trouxe com a oneração algo próximo a um empréstimo compulsório, porém, sem a edição de uma Lei Complementar para tanto, tal como exigido pelo artigo 148 da Constituição Federal.
Por fim, seria impossível não mencionar que a edição da MP, certamente, causa grave instabilidade, prejudicando a segurança jurídica. Ora, como é possível que, apenas um dia após terem a notícia da desoneração da folha até 2027, os contribuintes sejam surpreendidos com a retomada de tal oneração?
Assim, a despeito das justificativas do Governo para sua edição, o que se nota é que a MP em nada cumpre seu papel, apenas servindo como forma de causar ainda mais instabilidade em um país que, há tempos, sofre em meio ao caos do sistema fiscal.
Vale lembrar que, além da retomada da oneração da folha de pagamentos, a mesma MP trata de outros assuntos igualmente polêmicos e que causam insegurança jurídica (mas que não serão tratados nesse artigo), como a limitação das compensações realizadas pelos contribuintes com créditos decorrentes de ação judicial, bem como a criação de mudanças no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (“PERSE”), criado na pandemia para beneficiar o setor cultural.
Nesse sentido, a esperança de muitos contribuintes para esse ano que se inicia é que a MP 1.202/2023 não seja convertida em Lei, deixando, assim, de produzir seus nefastos efeitos.
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Sobre a autora:
Michelle Cristina Bispo Romano é Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, com extensão em Contabilidade pelo IBET; bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Advogada em São Paulo; e-mail para contato: michelle_bispo@hotmail.com.