Constantemente, vemos em pauta discussões sobre a legalidade (ou ilegalidade) e a constitucionalidade (ou inconstitucionalidade) do chamado “voto de qualidade” no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”). Mais recentemente, esse assunto entrou novamente em voga, de forma fervorosa, ao ser expedida Medida Provisória, reestabelecendo o aludido instituto. Mas, afinal, do que se trata esse instituto e, mais importante, ele é, de fato, legal?
O “voto de qualidade”, também conhecido como “voto de minerva”, é o voto utilizado para desempate de julgamentos. No âmbito do CARF, o voto de qualidade encontra-se previsto no Decreto nº 70.235/1972, que, em seu artigo 25, § 9º, disciplina que, em caso de empate de votos no julgamento, os Presidentes da Câmara Superior de Recursos Fiscais (“CSRF”), das Câmaras, das Turmas e das Turmas Especiais do CARF (que serão sempre representantes da Fazenda Nacional) terão o voto de minerva no julgamento, de modo que o seu entendimento prevalecerá para fins de desempate.
Dentre as várias discussões travadas para discutir a validade de tal instituto, destaca-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade (“ADIn”) nº 5.731, ajuizada em 2017 pela Ordem dos Advogados do Brasil (“OAB”), por meio da qual a autarquia sustentava a inconstitucionalidade da disposição do § 9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/1972, uma vez que:
1) o “voto duplo” do Presidente feriria os princípios da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade, sendo, inclusive, pouco democrático, já que o Presidente é um dos responsáveis por empatar a votação e, de igual modo, seria ele quem desempataria – colacionando, inclusive, votos de Ministros do próprio Supremo Tribunal Federal (“STF”), no sentido de ser inconstitucional o voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE” – AI nº 682.486/DF); e
2) o voto de qualidade invadiria a competência outorgada à Lei Complementar (“LC”) para tratar de normas gerais de Direito Tributário (in casu, de Processo Administrativo Tributário) – violando, desta forma, o artigo 146 da Constituição Federal (“CF”) –, visto que a matéria já teria sido regulamentada pelo artigo 112 do Código Tributário Nacional (“CTN”) – editado com força de LC –, que regulamentou o princípio do in dubio pro contribuinte, de modo que a regra do artigo 112 do CTN deveria ser aplicada em caso de empate de votos nos julgamentos do CARF.
Ocorre que, antes de a referida ADIn ter sido julgada, o Congresso Nacional buscou solucionar a controvérsia por meio da Lei nº 13.988/2020 que, em seu artigo 28, adicionou o artigo 19-E à Lei nº 10.522/2002, disciplinando que, “[e]m caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972 , resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte”.
Deste modo, a legislação estaria supostamente obedecendo o princípio do in dubio pro contribuinte disposto no artigo 112 do Código Tributário Nacional e, por conta disso, em abril de 2020, o Ministro Gilmar Mendes declarou a perda superveniente do objeto da ação e, com isso, julgou extinta a ADIn nº 5.731.
Entretanto, com a chegada de um novo Governo ao Poder, foi expedida da Medida Provisória (“MPV”) nº 1.160/2023, publicada em 12.01.2023, que (i) restabeleceu o voto de qualidade do § 9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/1972 como método de desempate no julgamento do CARF, e (ii) revogou o artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, afastando, consequentemente, o princípio do in dubio pro contribuinte como método de desempate de julgamentos no CARF.
Embora seja respeitável os argumentos daqueles que entendam pela adequação da aludida MPV, fato é que o restabelecimento do voto de qualidade para os julgamentos do CARF é medida que afronta o sistema jurídico pátrio e que merece ser rechaçado pelo Congresso Nacional (não convertendo em Lei a Medida Provisória quanto a essa matéria). Explica-se.
Em primeiro lugar, a sistemática do voto de qualidade não se coaduna com o próprio Código Tributário Nacional, uma vez que o artigo 112 do CTN dispõe que “[a] lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto à capitulação legal do fato; à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; à autoria, imputabilidade, ou punibilidade; à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação”.
Ou seja, a norma prevista no artigo 112 do CTN é expressa em adotar como diretriz para aplicação da norma tributária o princípio do in dubio pro contribuinte, de modo que, havendo dúvida razoável sobre o cometimento ou não da suposta infração (o que é caracterizado, por exemplo, pelo empate do julgamento), tal princípio não deve ser ignorado.
Vale reforçar, desde já, que não se está dizendo que o processo administrativo tributário seria uma matéria que deveria ser regulada por Lei Complementar por depender de uma norma geral. Muito pelo contrário. Sabe-se que as normas de processo administrativo não se subsomem à disposição do artigo 146 da Constituição Federal e, por conta disso, os procedimentos relativos ao julgamento de recursos pelo CARF, por exemplo, podem ser disciplinados, inclusive, por Lei Ordinária (e, consequentemente, por Medida Provisória).
Contudo, o artigo 112 do CTN, ao instituir o princípio do in dubio pro contribuinte, não está tratando de um procedimento processual. O artigo 112 do Codex, neste caso, está regulamentando, em verdade, uma limitação ao poder de tributar (em conformidade com o inciso II do artigo 146 da Constituição), definindo que, em caso de dúvida, a norma deve ser interpretada de maneira mais favorável ao contribuinte, normatizando o princípio do in dubio pro contribuinte.
Por conta disso, apesar de a Lei Ordinária (e a Medida Provisória) poder disciplinar sobre questões de processo administrativo tributário, a norma não pode deixar o princípio do in dubio pro contribuinte à margem, de modo que os procedimentos deverão respeitar o disposto no artigo 112 do Código Tributário Nacional.
Desta feita, considerando que o artigo 112 do CTN disciplina que a norma tributária deve ser interpretada favoravelmente ao contribuinte em caso de dúvida, não poderia a MPV nº 1.160/2023 disciplinar que, em caso de empate de votos (evidenciando haver dúvida, visto que metade dos julgadores entende que a cobrança é indevida, enquanto a outra metade entende ser devida a exação), o método de desempate permitirá a manutenção da exigência.
Até porque o débito tributário deve ser líquido e certo (tanto que a certidão de dívida ativa tem presunção de liquidez e certeza, conforme artigo 204 do CTN, bem como § 3º do artigo 2º e caput do artigo 3º da Lei nº 6.830/1980) e, por conta disso, se há dúvida por parte do órgão julgador administrativo quanto à certeza da exação, a dívida ativa não pode subsistir, evidenciando que exigência já está contaminada.
Vale dizer, outrossim, que embora alguns doutrinadores defendam que o artigo 112 do CTN seria aplicável apenas às multas colacionadas nos lançamentos (autos de infração e notificação de lançamento) e nos despachos decisórios (que não homologam pedidos de restituição e/ou declarações de compensação – PER/DCOMPs), em que pese o respeito que se nutre por esses juristas e por seu entendimento, ousa-se discordar de tal posicionamento.
Isso, porque, como visto, o artigo 112 do Codex propõe a aplicação do princípio do in dubio pro contribuinte em relação à “lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades”. Ora, se o CTN estivesse dispondo exclusivamente sobre as multas aplicadas ao sujeito passivo, o artigo 112 trataria apenas da “lei tributária que lhe comina penalidades”, sendo desnecessária a menção feita à “lei tributária que define infrações”, pois isso traria uma aparente redundância ao texto legal.
Isso, inclusive, acaba por ser reforçado quando se relembra que o sujeito passivo, quando deixa de realizar o pagamento de um tributo que é devido, há uma infração à lei tributária, visto que a norma determina que seja realizado um ato (pagar tributo) que não é executado pelo sujeito passivo.
Neste caso, a lei tributária define a infração (não pagamento do tributo), tendo por consequência a cobrança do imposto, da taxa ou da contribuição que seria devida. Concomitantemente, em razão da infração incorrida, é aplicada uma multa (penalidade) que integrará a cobrança em sua totalidade.
Assim, se não houvesse infração à lei tributária (que determinou que o sujeito passivo fizesse algo – in casu, realizasse o pagamento do tributo), não haveria tributo devido que pudesse ser cobrado. E se não houvesse infração, não haveria a possibilidade de que o Fisco aplicar uma sanção, pois não haveria um ato (omissivo ou comissivo) a ser apenado.
Por conta disso, seja do ponto de vista linguístico (inclusive, com apoio na Teoria da Linguagem), seja do ponto de vista de concatenação lógica de ideias (de alinhamento de atos e consequências com base em modalização deôntica), o artigo 112 do CTN é uma norma que se aplica não apenas às multas, mas também aos tributos exigidos do sujeito passivo.
Desta feita, em primeiro lugar, é de se concluir que os processos administrativos tributários devem respeitar o princípio do in dubio pro contribuinte, positivado por meio do artigo 112 do CTN, razão pela qual o voto de qualidade (restabelecido na esfera federal por meio da MPV nº 1.160/2023) é ilegal, por sua contrariedade ao Código Tributário Nacional e, via de consequência, inconstitucional, por desrespeitar um princípio que se presta a limitar o poder de tributar (tratado no inciso II do artigo 146 da Constituição).
Mas não é só. Em segundo lugar, o voto de qualidade também acaba por violar o direito de petição e o direito de acesso à justiça, insculpidos, respectivamente, nos incisos XXXIV, alínea “a”, e XXXV, ambos do artigo 5º da Magna Carta.
Isso, porque o contribuinte que se vê diante de uma situação em que há dúvida (em que metade dos julgadores concorda que a cobrança não é devida, enquanto a outra metade compreende que a cobrança deve ser mantida), ao invés de ver o lançamento contra si lavrado ser cancelado, ele se verá em uma situação de que, para seguir discutindo a exação, terá de ajuizar uma ação judicial, pagando custas judiciais, de modo que o voto de qualidade onerará ainda mais o contribuinte.
E mais grave: ao se deparar com uma execução fiscal (ajuizada com base em título executivo incerto, como mencionado anteriormente), o contribuinte será eventualmente obrigado a apresentar garantia para um débito que nem o próprio órgão administrativo que analisou a matéria está convicto de sua certeza, o que, como já relatado anteriormente em outro artigo publicado pela Escola Brasileira de Tributos[1] – cujas razões não serão aqui retomadas, para evitar que o presente assunto se torne ainda mais extenso do que já é –, prejudica o direito de petição e o direito de acesso à justiça, insculpidos, respectivamente, nos incisos XXXIV, alínea “a”, e XXXV, ambos do artigo 5º da Constituição.
Assim, se em situações menos controversas há a violação à Carta Magna, tais danos aos direitos dos contribuintes se tornam ainda mais latentes quando se está em uma hipótese permeada por dúvidas desde sua origem (revisão do ato administrativo pelo órgão administrativo).
Deste modo, em razão da violação de dois direitos constitucionalmente assegurados aos contribuintes (o que é ocasionado pela exigência de garantia para oposição de embargos à execução fiscal, mas que é reforçado por ter de submeter a tal sistemática uma dívida incerta), vê-se que o voto de qualidade também incorre em inconstitucionalidade por desrespeitar, indiretamente, os incisos XXXIV, alínea “a”, e XXXV, ambos do artigo 5º da Constituição.
Portanto, nota-se que o restabelecimento do voto de qualidade é prejudicial a direitos dos contribuintes, além de subverter a lógica legislativa outorgada pela Constituição Federal, já que permite que uma sistemática do processo administrativo tributário se sobreponha a um princípio regulamentado por uma norma que tem status de Lei Complementar.
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[1] BISPO ROMANO, Michelle Cristina. A exigência de garantia à execução como um limitador ao direito de petição e de acesso à justiça. São Paulo: Escola Brasileira de Tributos. 20 de abril de 2022.
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Sobre a autora:
Michelle Cristina Bispo Romano é Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, com extensão em Contabilidade pelo IBET; bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Advogada em São Paulo; e-mail para contato: michelle_bispo@hotmail.com.