No dia 29.09.2023, foi iniciado, no Supremo Tribunal Federal (“STF”), o julgamento do Tema de Repercussão Geral nº 104, por meio do qual se discute a constitucionalidade (ou não) da cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (“IOF”) sobre contratos de mútuo firmados entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física, quando nenhuma das partes é instituição financeira ou a ela equiparada. Mas, afinal, o que permite a alegação da inconstitucionalidade da cobrança nessas situações, tal como defendido pelos contribuintes?
A essência da discussão, em verdade, está atrelada aos objetivos do aludido imposto. Isso, porque, como se sabe, o IOF é um tributo “extrafiscal”. Explica-se.
De acordo com o artigo 174 da Constituição Federal, o Estado é um agente “regulador da atividade econômica” e, por conta disso, “o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.
Deste modo, apesar da Constituição Federal, em seu artigo 170, disciplinar sobre a livre iniciativa como pilar primordial da ordem econômica brasileira, ainda assim o Estado tem por finalidade regulamentar a atividade econômica para que (i) o sistema econômico seja voltado aos interesses públicos, e (ii) não haja abuso por parte de algum agente de mercado.
Nesse sentido, inclusive, é a lição de José dos Santos Carvalho Filho[1], ao consignar que “Estado Regulador é aquele que, através de regime interventivo, se incumbe de estabelecer as regras disciplinadoras da ordem econômica com o objetivo de ajustá-la aos ditames da justiça social”, de modo que, “[c]omo agente normativo, o Estado cria as regras jurídicas que se destinam à regulação da ordem econômica”.
Dentre os mecanismos verificados na atuação do Estado como agente regulador, tem-se a possibilidade de utilização de tributos como forma de incentivar ou desincentivar atividades sociais e práticas mercadológicas. Assim, o Estado reduz (ou, até mesmo, “zera”) a carga tributária sobre aquilo que deseja incentivar e, em contrapartida, majora a tributação do que pretende coibir. Trata-se da figura denominada “extrafiscalidade tributária”.
De acordo com Leandro Paulsen[2], um tributo possui “finalidade extrafiscal quando os efeitos extrafiscais são não apenas uma decorrência secundária da tributação, mas seu efeito principal, deliberadamente pretendido pelo legislador que se utiliza do tributo como instrumento para dissuadir ou estimular determinadas condutas”.
Agora, como saber quais são os tributos primordialmente extrafiscais? A própria Constituição responde a esse questionamento, disciplinando que os tributos que regulam a economia (e, portanto, são extrafiscais) devem ter impacto imediato sobre o mercado e, por conta disso, não se sujeitam ao princípio da anterioridade anual e/ou ao princípio da anterioridade nonagesimal.
Essa é a disposição do § 1º do artigo 150 da Constituição, ao disciplinar que “[a] vedação do inciso III, ‘b’ [anterioridade anual], não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I [empréstimos compulsórios para despesas extraordinárias de calamidade pública ou de guerra], 153, I [imposto sobre importações], II [imposto sobre exportações], IV [imposto sobre produtos industrializados] e V [imposto sobre operações financeiras]; e 154, II [imposto extraordinário de guerra]; e a vedação do inciso III, ‘c’ [anterioridade nonagesimal], não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I [empréstimos compulsórios para despesas extraordinárias de calamidade pública ou de guerra], 153, I [imposto sobre importações], II [imposto sobre exportações], III [imposto sobre a renda] e V [imposto sobre operações financeiras]; e 154, II [imposto extraordinário de guerra]”.
Assim, com exceção do imposto sobre a renda (que não está obrigado a respeitar o princípio da anterioridade nonagesimal em razão de seu regime de apuração), dos empréstimos compulsórios de calamidade pública e de guerra, e do imposto extraordinário de guerra (que não respeitam a anterioridade em função de seu status emergencial), os demais tributos mencionados no § 1º do artigo 150 da Constituição (quais sejam o II, o IE, o IPI e o IOF) são os que possuem caráter extrafiscal.
Tanto isso é verdade que é comum o Estado instituir, por exemplo, a redução de alíquota do IPI como forma de incentivar o aumento do consumo (como ocorreu com a alíquota zero para a “linha branca” e para veículos automotores em 2012), ou a majoração do IPI sobre cigarros como forma de desincentivar seu consumo por força de seu caráter nocivo à saúde, ou, ainda, a majoração do IOF incidente sobre compras internacionais realizadas no cartão de crédito como forma de desincentivar o consumo no exterior para, assim, alavancar o turismo em território nacional.
O que se vê, com isso, é que o IOF não é um tributo que tem finalidade meramente arrecadatória. Ao contrário, ele carrega consigo preceitos primordiais de regulação de mercado, com vistas a incentivas ou desincentivar determinadas práticas negociais, sendo, portanto, extrafiscal.
E é justamente por se tratar de tributo extrafiscal que os contribuintes passaram a questionar a constitucionalidade do artigo 13 da Lei nº 9.779/1999, que prevê a incidência do IOF sobre “operações de crédito” praticadas entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física não pertencentes ao sistema financeiro, ao dispor que a tributação de tais operações deve respeitar “as mesmas normas aplicáveis às operações de financiamento e empréstimos praticadas pelas instituições financeiras”.
Isso, porque, em sendo o IOF um tributo extrafiscal, por qual razão seria autorizada a sua incidência sobre operações de pessoas jurídicas ou de pessoa jurídica com pessoa física não “financeiras”, visto que, nestes casos, não haveria qualquer regulação de mercado, tampouco incentivo ou desincentivo a determinadas práticas mercadológicas?
Note-se que a incidência do IOF sobre operações de mútuo tem por finalidade primordial a regulação Estatal das operações de crédito firmadas por instituições financeiras. Em sendo assim, perde sentido a cobrança de tal tributo sobre mútuos firmados entre pessoas não financeiras, já que, nesse caso, as partes envolvidas não têm por objeto de sua atividade a realização de tais operações de crédito.
Assim, eventual incidência do IOF nesses casos, além de não abarcar qualquer finalidade extrafiscal, poderia, até mesmo, ferir princípios basilares, como a equidade e proporcionalidade da cobrança.
Assim, o que se vê na situação tratada pelo artigo 13 da Lei nº 9.779/1999, na verdade, é a utilização do IOF sem considerar seu caráter extrafiscal (constitucionalmente insculpido), imputando a ele uma finalidade meramente arrecadatória (ou seja, em dissonância com os objetivos de sua criação, pretendidos pelo legislador constituinte).
Portanto, por não instituir a cobrança do IOF de maneira extrafiscal, o artigo 13 da Lei nº 9.779/1999 acaba por colidir com o comando constitucional de que o IOF tem caráter regulador de mercado, razão pela qual se faz necessária a declaração de inconstitucionalidade do referido artigo, sendo essa a expectativa dos contribuintes para o desfecho do julgamento a ser realizado pela Suprema Corte sobre o Tema nº 104.
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[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2011. p. 975
[2] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. pp. 18-19
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Sobre a autora:
Michelle Cristina Bispo Romano é Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, com extensão em Contabilidade pelo IBET; bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Advogada em São Paulo; e-mail para contato: michelle_bispo@hotmail.com.