Como se sabe, o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (“ITBI”) é tributo incidente sobre a transmissão inter vivos, a qualquer título e por ato oneroso, de bens imóveis, bem como sobre a cessão, por ato oneroso, de direitos relativos à aquisição de bens imóveis.
Na transmissão de bens imóveis ou direitos sobre tais bens para fins de incorporação ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, a incidência do aludido imposto fica afastada por força de imunidade tributária. Isso, porque o artigo 156, §2º, inciso I da Constituição Federal estabelece que “não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.
A leitura do dispositivo constitucional não deixa dúvidas: o ITBI não incide quando a transmissão do imóvel ou dos direitos sobre ele for feita para pessoa jurídica, com o intuito de integralização de capital. Discute-se, porém, se regra imunizante comportaria uma exceção, qual seja quando se verificar que a pessoa jurídica tenha como atividade preponderante a compra e venda desses bens ou direitos, a locação de imóveis ou o arrendamento mercantil.
Isso, porque, nesses casos, o bem a ser integralizado é, também, o produto explorado na atividade da empresa. Ou seja, enquanto para empresas de outros ramos de atividades, um bem imóvel ou direitos sobre esse bem seriam incorporados ao seu ativo permanente, tratando-se de bem/direito não explorado pela atividade, as empresas atuantes no ramo imobiliário, ao receberem um bem imóvel ou direito sobre tal bem, o incorporam em seu ativo circulante, já que esses bens/direito são também o produto da atividade empresarial dessas pessoas jurídicas.
Essa matéria, inclusive, foi tratada em artigo veiculado pela Escola Brasileira de Tributos em 19 de janeiro de 2022, redigido por Bruno Romano[1].
Em se compreendendo pela inaplicabilidade da imunidade nessas hipóteses, restaria, então, saber como determinar-se que uma empresa possui como atividade preponderante a compra e venda desses bens ou direitos, a locação de imóveis ou o arrendamento mercantil. E a resposta foi trazida pelo próprio legislador.
O Código Tributário Nacional (“CTN”), após reforçar a não incidência do ITBI na transmissão de bens imóveis ou direitos a eles atrelados para integralização de capital da pessoa jurídica, estabelece, em seu artigo 37, quais os parâmetros para se determinar a atividade preponderante da pessoa jurídica, para fins de manutenção ou não da regra imunizante.
Nessa esteira, o §1º do aludido artigo 37 do CTN estabelece que “considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinquenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo”. Assim, trata-se de critério objetivo de análise: verificando-se a receita operacional da empresa nos 2 anos anteriores e subsequentes à transmissão, será considerada como preponderante eventual atividade imobiliária por ela desenvolvida se os frutos dessa atividade corresponderem a 50% ou mais do valor total da receita operacional da empresa de tal período.
Mas, o legislador não parou por aí, tendo se preocupado em estabelecer, também, como determinar a atividade preponderante de uma empresa recém constituída. Nessa esteira, o §2º do mesmo artigo 37 do CTN consigna que “se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição”.
Ou seja, tratando de empresa recém constituída (assim entendida como aquela cuja constituição se deu após a aquisição do bem imóvel ou do direito sobre ele incidente ou, ainda, aquela constituída em prazo inferior a 2 anos de tal aquisição), a verificação da atividade preponderante se dará avaliando-se, exclusivamente, o momento futuro à transferência dos bens imóveis ou direitos sobre eles.
Assim, para a novel empresa, o legislador estabelece que, será preponderante eventual atividade imobiliária se, nos 3 anos subsequentes à aquisição dos bens, os frutos de tal atividade corresponderem a 50% ou mais do valor total de sua receita operacional.
Ocorre que, ao assim dispor, o legislador acaba por criar uma limitação à atividade de fiscalização que deve ser observada nesses casos, qual seja uma limitação temporal à análise da atividade preponderante da empresa.
Ora, se a atividade preponderante apenas pode ser analisada, sobretudo para empresas recém constituídas, a partir de fatos posteriores à transmissão do bem imóvel ou direito a ele atrelado (a verificação das receitas operacionais dos 3 anos subsequentes à transmissão), resta nítido que, para a atividade de fiscalização do ITBI eventualmente incidente na operação, deverá o Fisco aguardar a ocorrência desses fatos para, então, concluir se o imposto será ou não devido.
Porém, o que se verifica é que, na prática, nem sempre o Fisco aguarda esse período, sendo que, por vezes, são formuladas autuações contra contribuintes pessoas jurídicas recém constituídas, exigindo-se a cobrança de ITBI na transmissão de bens imóveis ou direitos sobre tais bens, alegando-se a verificação de preponderância de atividade imobiliária por parte da empresa, sem que, sequer, tenha transcorrido o prazo de 3 anos para análise de suas receitas operacionais.
Nesses casos, via de regra, o que o Fisco faz é utilizar do código de Classificação Nacional de Atividades Econômicas (“CNAE”) indicado pela empresa, em patente ilegalidade, já que, como visto, o legislador é categórico ao estabelecer o método de averiguação da atividade preponderante da pessoa jurídica (o que, frise-se, não inclui qualquer análise de CNAE). Trata-se, pois, de erro na atividade de fiscalização, que deve ser rechaçada.
A corroborar tal alegação, vale salientar que, recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em acertado julgado, afastou o ITBI sobre a transferência de bem à pessoa jurídica recém constituída, justamente por entender que não seria possível que o Fisco analisasse a atividade preponderante da empresa quando não havia transcorrido o prazo de 3 anos de sua constituição. Veja-se a ementa do respectivo acórdão, proferido em votação unânime:
“APELAÇÃO CÍVEL – Mandado de Segurança – ITBI – Integralização de imóveis do sócio ao capital social da impetrante – Pretendida não incidência do tributo municipal, nos termos do art. 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal – Sentença que denegou a segurança almejada – Reforma do r. decisório – Conquanto seu objeto social seja a administração de bens imóveis próprios e no seu cadastro nacional de pessoas conste a compra e venda de imóveis como atividade econômica, trata-se de empresa constituída recentemente, em 2021 – Impossibilidade de se aferir a atividade preponderante da impetrante, nos termos do art. 37, § 2º, do Código Tributário Nacional – Não incidência do tributo – Ordem concedida – Recurso provido”.
(TJSP; Apelação Cível 1004573-48.2021.8.26.0319; Relator (a): Silvana Malandrino Mollo; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Público; Foro de Lençóis Paulista – 1ª Vara; Data do Julgamento: 20/05/2023; Data de Registro: 20/05/2023).
Embora o acórdão ainda não seja definitivo, representa uma acertada posição do Tribunal, em plena conformidade com os parâmetros legais estabelecidos pelo artigo 37 do CTN.
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Sobre a autora:
Michelle Cristina Bispo Romano é Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, com extensão em Contabilidade pelo IBET; bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Advogada em São Paulo; e-mail para contato: michelle_bispo@hotmail.com.