Em âmbito administrativo comumente são verificados processos que demoram anos para serem analisados pelos órgãos julgadores competentes (com decisões que analisam o mérito ou determinam a realização de diligência), ficando, por vezes, sem qualquer movimentação durante longos períodos. Sobretudo quando se está diante de processos administrativos fiscais envolvendo cobrança de penalidade por infrações cometidas pelos contribuintes, a demora na discussão do processo pode acarretar consequências nefastas, com a cobrança de juros que, em alguns casos, chegam a superar os valores das próprias multas impostas.
Por conta disso, sobretudo nesses casos de processos administrativos que envolvem cobrança de multa, são cotidianamente vistos pedidos dos contribuintes para o reconhecimento da chamada prescrição intercorrente (que nada mais é senão a perda do direito do Fisco de exigir uma pretensão punitiva em razão da ausência de qualquer ação, durante determinado tempo, no curso de um procedimento), o que fazem, sobretudo, com base no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, o qual disciplina que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (destacado).
Ocorre que tais pedidos não costumam ser aceitos pelos tribunais administrativos pátrios. Para aqueles que defendem a impossibilidade do reconhecimento da prescrição intercorrente em processos administrativos fiscais, o fundamento legal utilizado encontra-se na Lei nº 9.873/1999, que trata do “prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta”.
Isso, porque, embora o § 1º do artigo 1º da aludida Lei estabeleça que “[i]ncide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada”, em seu artigo 5º, resta previsto que as disposições da aludida norma não se aplicariam “aos processos e procedimentos de natureza tributária”.
Com isso, há quem entenda que o aludido 5º da Lei nº 9.873/1999 permitiria afastar a existência de prescrição intercorrente em processos administrativos de âmbito fiscal.
Seguindo essa mesma linha de intelecção, em âmbito federal, por exemplo, a inaplicabilidade da prescrição intercorrente aos processos administrativos de natureza tributária é, ainda, referendada pela Súmula (Vinculante) nº 11 do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, que dispõe que “[n]ão se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal”.
Ocorre que não há dúvidas de que há uma aparente contradição entre o §1º do artigo 1º da Lei nº 9.873/1999 e o artigo 5º da mesma norma, sobretudo no que tange aos processos administrativos fiscais que envolvem cobranças de penalidades. Isso, porque, se de um lado, a Lei expressamente aplica a prescrição intercorrente aos processos que envolvem uma ação punitiva da administração (o que claramente ocorre nos casos de cobranças de multas), por outro lado, a mesma Lei afasta a aplicação da prescrição intercorrente em processos de natureza tributária.
Assim, apesar da potencial inconstitucionalidade do referido artigo 5º da Lei nº 9.873/1999 (e, consequentemente, de outras fontes normativas que seguem na mesma linha, como é o caso da referida Súmula CARF nº 11) – haja vista que, ainda que uma lei discipline que a prescrição intercorrente não se aplicaria a processos administrativos de determinada matéria, ainda assim se faz necessário o respeito aos princípios assegurados pelo inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal –, o que importa ao momento é verificar se os processos administrativos envolvendo cobranças, pelo Fisco, de penalidades se enquadrariam (i) no rol de processos tributários (e, portanto, seriam atingidos pelas exceções do artigo 5º da Lei nº 9.873/1999 e, por exemplo, da Súmula Vinculante nº 11 do CARF), ou (ii) no conceito de ações punitivas da Administração Pública Federal (vinculando-se, assim, à regra do § 1º do artigo 1º da Lei nº 9.873/1999).
Nessa esteira, poder-se-ia argumentar, inicialmente, que as multas, por serem vinculadas ao descumprimento de normas tributárias, possuiriam natureza jurídica tributária, o que seria reforçado pelo fato de que o Código Tributário Nacional, em seu artigo 113, §3º, disciplinar que “[a] obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária”.
Contudo, o § 3º do artigo 113 do CTN não se presta a definir a natureza jurídica (tributária ou punitiva) dos valores exigidos em autos de infração que consignam a cobrança de multas, visto que a referida norma disciplina apenas que o descumprimento de um dever instrumental permite que seja constituída uma obrigação pecuniária (multa), que deverá ser paga pelo contribuinte em favor do Fisco.
Por conta disso, entende-se que o mais adequado é que a análise da natureza jurídica do processo deve se dar com base em seu objeto, isto é, verificando o que está sendo exigido pela Autoridade Fiscal. Valendo-se dessa premissa, é possível concluir que:
(i) para os processos administrativos que consignam a cobrança de tributos, aplica-se o artigo 5º da Lei nº 9.873/1999 e a Súmula Vinculante nº 11 do CARF (o que, ainda assim, devem ser interpretados à luz do inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal); e
(ii) para os processos administrativos que consignam a cobrança de penalidades, como as multas que se prestam a apenar os contribuintes pelo descumprimento de alguma determinação disciplinada em lei, aplica-se a regra do § 1º do artigo 1º da Lei nº 9.873/1999.
Corroborando essa interpretação da Lei nº 9.873/1999, recentemente (em 20.03.2023), o Poder Judiciário (mais especificamente a 24ª Vara Cível Federal da Subseção Judiciária de São Paulo), quando do julgamento do mandado de segurança autuado sob o nº 5005105-40.2021.4.03.6102, entendeu pela incidência da prescrição intercorrente sobre processo administrativo fiscal de âmbito federal (de nº 10983.720683/2016-28), simplesmente porque o referido processo administrativo, tal como relatado pela parte autora em sua petição inicial, consigna “a cobrança de penalidades em razão de supostas infrações à legislação”.
Com isso, a referida sentença reconheceu “a ocorrência da prescrição intercorrente nos autos do processo administrativo nº 10983.720683/2016-28”, determinado que fosse “cancelada a penalidade ali imposta, pela prescrição de sua exigibilidade”.
Embora se trate de um julgado ainda não definitivo e isolado sobre o tema, é inequívoca sua importância sobre a correta interpretação da Lei nº 9.873/1999, não havendo razões para se afastar o reconhecimento da prescrição intercorrente, ao menos, aos processos administrativos federais que consignam a cobrança de penalidades.
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Sobre a autora:
Michelle Cristina Bispo Romano é Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, com extensão em Contabilidade pelo IBET; bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Advogada em São Paulo; e-mail para contato: michelle_bispo@hotmail.com.