Em dezembro de 2011, foi editada a Lei nº 12.546/2011 que instituiu a contribuição previdenciária sobre a receita bruta (“CPRB”), desonerando a folha de salários para 17 (dezessete) setores da economia, substituindo-se a alíquota de 20% (vinte por cento) de contribuição previdenciária sobre a folha de salários por uma alíquota de 1% (um por cento) a 4,5% (quatro e meio por cento) de CPRB sobre a receita bruta do contribuinte.
A sistemática seria válida até 31 de dezembro de 2014, mas foi posteriormente prorrogada para até 31 de dezembro de 2023 e, recentemente, em razão da derrubada dos vetos presidenciais sobre o Projeto de Lei nº 334/2023 e a consequente promulgação da Lei nº 14.784/2023 (publicada em 28 de dezembro de 2023), esse regime de tributação foi prorrogado até 31 de dezembro de 2027.
Contudo, o Governo Federal, discordando da decisão do Congresso Nacional, resolveu publicar, em 29 de dezembro de 2023 (um dia após a promulgação da citada Lei), a Medida Provisória nº 1.202/2023 que, dentre outros temas, revogou a sistemática da CPRB, reonerando gradativamente a folha de salários, o que resultaria na retomada da tributação integral da contribuição previdenciária a partir de 2028.
Entretanto, em razão de uma grande rejeição dessa Medida Provisória junto ao Congresso Nacional, o Governo Federal optou por “recuar”, publicando, assim, a Medida Provisória nº 1.208/2024, que revogou a parte da MPV nº 1.202/2023 que tratava sobre a reoneração da folha de salários, de modo que o regime da CPRB voltou a viger em sua inteireza para os 17 (dezessete) setores da economia beneficiados.
Ocorre que o Governo Federal ainda não desistiu da ideia de reonerar a folha de salários e, por conta disso, enviou ao Congresso Nacional (em regime de urgência) o Projeto de Lei nº 493/2024, disciplinando que o regime de tributação da contribuição previdenciária será o seguinte:
a) para as atividades de transporte rodoviário coletivo, transporte metroferroviário de passageiros, transporte rodoviário de cargas, comunicação (rádio e televisão), tecnologia da comunicação - TIC, e tecnologia da informação - TI, deixar-se-á de utilizar a sistemática da CPRB e passar-se-á a recolher a contribuição previdenciária patronal sobre a folha de salários às alíquotas de (i) 10% (dez por cento) no ano de 2024 (respeitando‑se o princípio da anterioridade nonagesimal), (ii) 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) no ano de 2025, (iii) 15% (quinze por cento) no ano de 2026, (iv) 17,5% (dezessete inteiros e cinco décimos por cento) no ano de 2027, e (v) 20% (vinte por cento) a partir do ano de 2028;
b) para as atividades de couro, calçados, construção civil, construção e obras de infraestrutura, comunicação (impressa, como livros, jornais e revistas), deixar-se-á de utilizar a sistemática da CPRB e passar-se-á a recolher a contribuição previdenciária patronal sobre a folha de salários às alíquotas de (i) 15% (quinze por cento) no ano de 2024 (respeitando-se o princípio da anterioridade nonagesimal), (ii) 16,25% (dezesseis inteiros e vinte e cinco centésimos por cento) no ano de 2025, (iii) 17,5% (dezessete inteiros e cinco décimos por cento) no ano de 2026, (iv) 18,75% (dezoito inteiros e setenta e cinco centésimos por cento) no ano de 2027, e (v) 20% (vinte por cento) a partir do ano de 2028; e
c) para as atividades de call center, têxtil, confecção e vestuário, proteína animal, fabricação de veículos e carrocerias, máquinas e equipamentos, e projetos de circuitos integrados, deixar-se-á de utilizar a sistemática da CPRB e passar-se-á a recolher a contribuição previdenciária patronal sobre a folha de salários às alíquotas de 20% (vinte por cento) após o transcurso do prazo de 90 (noventa) dias, contados da publicação da Lei que porventura venha a ser aprovada (respeitando‑se, apenas, o princípio da anterioridade nonagesimal).
As alíquotas reduzidas (inferiores a 20%) deverão ser aplicadas apenas para os empregados que possuam salário-de-contribuição mensal igual ou inferior a um salário-mínimo. Para os empregados que possuam salário-de-contribuição superior ao mínimo, aplicar-se-á a alíquota reduzida até o limite (salário-mínimo) e, sobre o excedente, a alíquota “padrão” de 20% (vinte por cento).
Apesar do interesse do Governo Federal em reonerar a folha de salários, é de se salientar que, na realidade, esse Projeto de Lei acaba por nascer já maculado por uma inconstitucionalidade.
Isso, porque, o inciso III do artigo 18 da Emenda Constitucional nº 132/2023 determinou que “[o] Poder Executivo deverá encaminhar ao Congresso Nacional, em até 90 (noventa) dias após a promulgação desta Emenda Constitucional, projeto de lei que reforme a tributação da folha de salários”.
O que se nota, com isso, é que a mencionada norma constitucional determina que haja uma reforma do sistema de tributação sobre a folha, não existindo mais interesse na manutenção do sistema atual de incidência das contribuições previdenciárias, o que, já por isso, evidencia o desrespeito do Governo Federal ao inciso III do artigo 18 da Emenda Constitucional nº 132/2023, já que o Projeto de Lei nº 493/2024 não busca reformar o sistema, mas, sim, está restabelecendo a sistemática anteriormente existente (desrespeito formal).
Mas além do desrespeito formal acima mencionado, é de se verificar que o Projeto de Lei nº 493/2024 também incorreu em desrespeito material à determinação da Emenda à Constituição nº 132/2023, visto que, da interpretação da norma constitucional, pressupõe-se que a reforma da sistemática de tributação previdenciária demanda uma desoneração da folha de salários.
Isso, porque o parágrafo único do artigo 18 da Emenda à Constituição nº 132/2023 determina que a perda de arrecadação com a reforma da tributação sobre a folha de salários (que ocorrerá se houver a desoneração da folha com a instituição de uma nova sistemática que incentive a geração de empregos) será compensada com o eventual aumento da arrecadação que vier a ser causado pela reforma da tributação sobre a renda (determinado pelo inciso I do artigo 18 da EC nº 132/2023).
Ou seja: (i) enquanto o inciso III do artigo 18 da Emenda Constitucional nº 132/2023 determina que o Governo proponha a reforma da sistemática da tributação sobre a folha de salários, o Projeto de Lei nº 493/2024 restabelece o regime de arrecadação existente antes de 2011 (desrespeito formal), e (ii) enquanto o parágrafo único do artigo 18 da Emenda à Constituição nº 132/2023 permite concluir que a mencionada reforma deve desonerar a folha de salários, o Projeto de Lei nº 493/2024 restabelece a tributação integral sobre a folha de salários (desrespeito material).
Por conta disso, o que se vê é que o Projeto de Lei nº 493/2024 é inconstitucional por violar a determinação constante do inciso III e parágrafo único do artigo 18 da Emenda Constitucional nº 132/2023, razão pela qual é de se esperar que (i) o Congresso Nacional venha a rejeitar tal proposição do Governo Federal, mantendo‑se, assim, a sistemática da desoneração da folha de salários insculpida pela Lei nº 12.546/2011 e prorrogada pela Lei nº 14.784/2023, e que (ii) o Governo Federal apresente, até o dia 20 de março de 2024 – quando se encerra o prazo de 90 (noventa) dias estipulado no inciso III do artigo 18 da Emenda Constitucional nº 132/2023 – um projeto de lei ao Congresso Nacional propondo a reforma do sistema de arrecadação previdenciária que desonere a folha de salários de todos os setores da economia – não se restringindo mais a apenas 17 (dezessete) atividades.
-
Sobre a autora:
Michelle Cristina Bispo Romano é Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, com extensão em Contabilidade pelo IBET; bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Advogada em São Paulo; e-mail para contato: michelle_bispo@hotmail.com.