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Especial Reforma Tributária – Parte 2: A inconstitucionalidade da PEC n. 45/2019

Dando continuidade a essa série especial relativa à Reforma Tributária, tem-se de rigor, antes de tratar da matéria central deste texto, relembrar o que foi trazido no último artigo da Escola Brasileira de Tributos.

No texto de 5 de julho de 2023, de autoria de Michelle Cristina Bispo Romano[1], foram apresentadas as principais (não todas) mudanças que serão trazidas pela Proposta de Emenda Constitucional – PEC n. 45/2019, quais sejam (i) a criação de um imposto sobre valor agregado – IVA “dual” (sendo o imposto sobre bens e serviços – IBS, em substituição ao ICMS e ao ISS, e a contribuição sobre bens e serviços – CBS, em substituição ao PIS, à COFINS e ao IPI, que incidirá em casos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente) e de um imposto seletivo, (ii) a manutenção do princípio da não-cumulatividade e a devolução de parte do valor pago para a população carente (“cashback do povo”), (iii) a utilização de alíquotas uniformes (regular de 25%, beneficiada de 10% para algumas atividades, e isenção para o que for essencial), e (iv) ampliação da tributação sobre o patrimônio.

Contudo, como ensina H. L. Mencken[2], “para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e completamente errada”. E esse posicionamento se aplica como uma luva à reforma tributária apresentada pela PEC n. 45/2019, visto que a proposta apresentada é inconstitucional, como se passa a evidenciar.

Vale salientar, preliminarmente, que a PEC n. 45/2019 possui um vício em seu processo legislativo, visto que, como ensina Roque Antônio Carrazza[3], em entrevista concedida ao Jornal Estado de S. Paulo, “não está sendo observado o devido processo legislativo da reforma constitucional”, já que “[a]s PECs devem ser examinadas pela Comissão de Constituição e Justiça e, depois, aprovadas pela Comissão Especial no prazo de quarenta sessões”, o que não foi respeitado, pois “aprovada dessa forma foi a PEC 45 e, não, o substitutivo, que é, em rigor, uma nova PEC”.

Mas não é só.

Como visto no texto de Michelle Cristina Bispo Romano[4], o “principal” objeto da proposta de reforma tributária é, sem dúvidas, a “simplificação” do sistema tributário, visto que 5 (cinco) dos tributos existentes hoje (ICMS, ISS, PIS, COFINS e IPI) serão reduzidos para 3 (três) novos tributos (IBS, CBS e Imposto Seletivo).

Hoje, há uma segregação de competências tributárias, visto que o ICMS é de competência de Estados, o ISS é de competência de Municípios, enquanto PIS, COFINS e IPI são de competência da União. Por outro lado, IBS, CBS e Imposto Seletivo, na “nova” sistemática, serão de competência da União, que realizará a cobrança dos valores e, após, realizará a redistribuição da receita a Estados e Municípios.

Ocorre que, pela sistemática atual, o ICMS é a principal “fonte de receitas” da maior parte dos Estados da Federação, enquanto o ISS é o principal meio arrecadatório da maioria dos Municípios do país. Com isso, o que se vê é que a Reforma Tributária está reduzindo a autonomia de Estados e Municípios, tornando-os, via de regra, majoritariamente dependentes dos repasses que serão realizados pela União.

Porém, esse aumento na dependência de Estados e Municípios à União acaba por ser inconstitucional. Explica-se.

A Constituição Federal de 1988 foi devidamente exarada pelo Poder Constituinte. O nome Poder Constituinte não é despropositado, visto que, como ensina Alexandre de Moraes[5] (Ministro do Supremo Tribunal Federal), o Poder Constituinte é originário, ilimitado, autônomo e incondicionado, de modo que sua deliberação não pode ser posteriormente modificada pelos Poderes Constituídos, que são subordinados ao Constituinte, sendo, portanto, sujeitos às limitações constantes da própria Constituição Federal (e, se houver extrapolamento a tais limitações, declarar-se-á a inconstitucionalidade da norma por meio de controle de constitucionalidade).

Como forma de assegurar a imutabilidade do que foi decidido pelo Poder Constituinte em decisões posteriores do Poder Constituído que a Carta Magna institui cláusulas pétreas. Esse, inclusive, é o entendimento de Gilmar Ferreira Mendes (Ministro do STF) e Paulo Gustavo Gonet Branco (Procurador da República)[6], que ensinam que as cláusulas pétreas, “além de preservarem a identidade do projeto constituinte originário, participam, elas próprias, como tais, também da essência inalterável” do decidido pelo Poder Constituinte, de modo que “[e]liminar a cláusula pétrea já é enfraquecer os princípios básicos do projeto do constituinte originário”.

Dentre as cláusulas pétreas, tem-se o comando disposto no § 4º do artigo 60 da Constituição Federal, que disciplina expressamente que nem as Propostas de Emenda Constitucional – PECs poderão disciplinar sobre matéria “tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais”.

E quando se diz em “abolir” no texto constitucional, não se trata apenas da norma do Poder Constituído que busque modificar alguma das matérias constantes no rol do § 4º do artigo 60 da Carta Magna, mas proíbe também que essa proposta venha a reduzir a abrangência dessas matérias, já que há a vedação para a proposta que seja também tendente a violar tais matérias.

Nesse sentido, inclusive, é o posicionamento de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[7] ao disciplinar que “se deve compreender o art. 60, § 4º, da CF, como proibição à deliberação de proposta tendente a abolir, isto é, a mitigar, a reduzir, o significado e a eficácia da forma federativa do Estado, do voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais”.

Ocorre que, de acordo com múltiplos posicionamentos do Supremo Tribunal Federal – mais especificamente, o entendimento dos Ministros Alexandre de Moraes[8], Ellen Gracie[9] e Carlos Velloso[10], em processos por eles relatados –, a repartição de competências e de receitas tributárias é um dos pilares que consagram o modelo federativo brasileiro.

Por conta disso, a PEC n. 45/2019 acaba por ferir o inciso I do § 4º do artigo 60 da Constituição, pois o modelo proposto retira autonomia de Estados e Municípios, já que estes Entes Federativos perderão a competência de instituir os tributos que representam suas principais fontes de arrecadação, assim como perderão a capacidade de fiscalizar a cobrar o ICMS e o ISS, de modo que há uma centralização de poder (fiscal e econômico) nas mãos da União.

Nesse sentido, tem-se o posicionamento de Cleide Regina Furlani Pompermaier[11] ao relatar que “[a] criação do Imposto Sobre o Valor Agregado (IVA), nos termos propostos pelo deputado Hauli viola profundamente a parte imodificável da Constituição Federal, porque afeta diretamente a autonomia dos municípios brasileiros, autonomia que foi alcançada em sua forma plena com a Constituição de 1988”.

Com isso, a PEC n. 45/2019 não extingue a forma federativa de Estado, mas a PEC mitiga, reduz a eficácia da federação e, por conta disso, adotando o posicionamento de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[12], acima transcrito, como a PEC é “tendente a abolir, isto é, a mitigar, a reduzir, o significado e a eficácia da forma federativa do Estado”, então a mencionada Proposta é inconstitucional por violar o inciso I do § 4º do artigo 60 da Carta Magna.

Esse é o posicionamento de Andressa Moraes dos Santos, Robison Teles dos Santos, Simone Augusta da Silva, Willian Gomes e Gustavo Abrahão dos Santos[13], que concluíram que “a reforma tributária fere o pacto federativo, uma vez que seus efeitos tomariam a autonomia dos Municípios e dos Estados, iriam diretamente contra as expressas cláusulas pétreas da Constituição, destituindo a forma federativa, ora por ceifar a autonomia dos entes, ora por apequenar o Estado”.

De igual modo, Hamilton Dias de Souza[14], após profunda análise do § 4º do artigo 60 da Carta Magna e os efeitos da PEC n. 45/2019, encerra seus estudos com a conclusão de que, “seja por seus efeitos deletérios à autonomia dos Estados e Municípios, seja por tratar-se de tributo material e formalmente pertencente à União, a PEC n. 45/2019 é inconstitucional, pois as alterações nela propostas ‘reduzem substancialmente a autonomia dos entes federados e implicam amesquinhamento da federação’[15].

Até por isso que Roque Antônio Carrazza[16], em entrevista ao Jornal Estado de S. Paulo, esclarece que a PEC n. 45/2019 ignorou o fato de a Constituição ser a Lei Maior, visto que “ela acaba com a federação”, já que “retirará a autonomia financeira dos Estados, dos municípios e do Distrito Federal”, sendo que “a autonomia financeira é o pressuposto necessário para a existência das autonomias política e jurídica”.

Vale salientar que a inconstitucionalidade da PEC n. 45/2019 foi notada, inclusive, por apoiadores históricos do atual Governo.

Do ponto de vista jurídico, tem-se o parecer de Ricardo Lodi Ribeiro[17] (advogado da ex-Presidente Dilma Vana Rousseff no processo de impeachment de 2016 e ex-candidato a Deputado Estadual pelo Partido dos Trabalhadores) alertando que “violam o princípio federativo medidas como que restrinjam substancialmente a competência de Estados e Municípios, com a extinção de seus impostos sem a criação de outros de larga base econômica que sejam de sua competência”, razão pela qual “[v]iolam o Pacto Federativo estabelecido pela Constituição de 1988 as propostas de emendas constitucionais que criam o chamado IBS, a partir da supressão da competência estadual e municipal para instituir o imposto, sem atribuir aos Estados outro imposto de larga base econômica, ainda que tais propostas reservem a essas entidades federativas a arrecadação”.

A inconstitucionalidade da PEC n. 45/2019 é reforçada por outro texto de Ricardo Lodi Ribeiro[18] ao explicar que a “exposição de motivos da PEC 45/2019 revela que os seus autores tiveram a preocupação de evitar a violação do princípio federativo ao declarar expressamente que os estados e os municípios manterão a sua autonomia para gerir suas próprias receitas, a despeito da extinção dos seus principais impostos”, pois, como menciona o próprio autor, “a dimensão fiscal do federalismo não se contenta com a repartição de receitas, sendo indispensável a adequada repartição de competências tributárias”.

Do ponto de vista político, isso também foi notado, como se vê, exemplificativamente, o posicionamento do Prefeito do Município do Rio de Janeiro, Eduardo Paes[19] (do Partido Social Democrático – PSD), no sentido de que “[n]ós estamos voltando a um modelo, que é um modelo de um Brasil autoritário, centralizador em que tudo se resolvia vindo de Brasília, e não é certamente esse país que nós queremos”.

No fim, é de se concluir que a PEC n. 45/2019 é inconstitucional, justamente por violar o Pacto Federativo. E ao violar o Pacto Federativo, viola-se a própria Democracia, já que a descentralização de poderes políticos (e econômicos) presta-se a equilibrar todo o sistema brasileiro, evitando que alguns entes fiquem dependentes de outros.

Infelizmente – como bem relata Steven Levitsky e Daniel Ziblatt[20] – os atos que causam um desmoronamento democrático demoram a ser percebidos. Por conta disso, apesar de a PEC n. 45/2019 estremecer a Democracia (justamente em razão da violação do Pacto Federativo), esse efeito também demorará a ser notado, justamente porque uma simplificação no sistema tributário é necessária e, por isso, a Reforma Tributária está sendo política e socialmente desejada.

Mas quando isso for percebido, será tarde demais…

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[1] BISPO ROMANO, Michelle Cristina. Especial Reforma Tributária – Parte 1: O que esperar?. São Paulo: Escola Brasileira de Tributos. 5 de julho de 2023

[2] MENCKEN, Henry Louis. Prejudices: Second Series. Nova Iorque: Knopf. 1920

[3] Estado de S. Paulo. Reforma acaba com federação, é projeto de poder e cheque em branco para a União, diz jurista. São Paulo: Estadão. 6 de julho de 2023

[4] BISPO ROMANO, Michelle Cristina. Especial Reforma Tributária – Parte 1: O que esperar?. São Paulo: Escola Brasileira de Tributos. 5 de julho de 2023

[5] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36ª edição. São Paulo: Atlas. 2020

[6] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13ª edição. São Paulo: Saraiva. 2018

[7] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13ª edição. São Paulo: Saraiva. 2018

[8] STF. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn n. 4.228/DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Julgado em 01.08.2018

[9] STF. Tribunal Pleno. Recurso Extraordinário – RE n. 591.033. Relatora: Ministra Ellen Grace. Julgado em 17.11.2010

[10] STF. Tribunal Pleno. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn-MC n. 936-5. Relator: Ministro Carlos Velloso. Julgado em 01.09.1993

[11] POMPERMAIER, Cleide Regina Furlani. PL de Reforma Tributária afeta diretamente autonomia de Municípios. São Paulo: Associação Paulista de Estudos Tributários – APET.

[12] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13ª edição. São Paulo: Saraiva. 2018

[13] DOS SANTOS, Andressa Moraes; DOS SANTOS, Robison Teles; DA SILVA, Simone Augusta; GOMES, Willian; DOS SANTOS, Gustavo Abrahão. A Reforma Tributária viola o Pacto Federativo? Uma resposta tributária constitucional. Guarujá: Revista Científica Intraciência n. 21. 2021

[14] SOUZA, Hamilton Dias de. Reforma Tributária: a PEC 45/19 afronta o pacto federativo. São Paulo: JOTA. 03.07.2019

[15] SOUZA, Hamilton Dias de. Emenda substitutiva à PEC 293-A/2004 agride o pacto federativo. São Paulo: Consultor Jurídico – ConJur. 03.11.2018

[16] Estado de S. Paulo. Reforma acaba com federação, é projeto de poder e cheque em branco para a União, diz jurista. São Paulo: Estadão. 6 de julho de 2023

[17] RIBEIRO, Ricardo Lodi. A Reforma Tributária viola o Federalismo Fiscal e a Capacidade Contributiva. Rio de Janeiro. 2019

[18] RIBEIRO, Ricardo Lodi. Reforma Tributária simplifica, mas tem efeitos regressivos e centralizadores. São Paulo: Consultor Jurídico – ConJur. 8 de abril de 2019

[19] Jovem Pan. “Estamos voltando a um modelo de um Brasil autoritário”, diz Eduardo Paes sobre reforma tributária. São Paulo: Jovem Pan. 4 de julho de 2023

[20] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias morrem. Nova Iorque: Crown. 2018

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Sobre o autor:

Bruno Romano é advogado tributarista, Professor do IBET/SP e da APET; Mestre em Direito Tributário pelo IBET; é pós-graduado em Direito Tributário pelo IBDT; tem extensão em Teoria Geral do Direito, em ICMS, em Contabilidade e em Processo Tributário pelo IBET; tem extensão em Tributação Indireta e em Contabilidade pelo IET; é bacharel em Direito pelo Mackenzie e bacharelando em Contabilidade pela Trevisan; e-mails: bruno.romano2000@gmail.com e bruno.romano@adv.oabsp.org.br.

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