EBT - Escola Brasileira de Tributos | O desrespeito à liberdade religiosa e às imunidades a templos de qualquer culto
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Direito tributário

O desrespeito à liberdade religiosa e às imunidades a templos de qualquer culto

Como mencionado em 10.01.2024[1], às vezes é preciso legislar sobre o óbvio. Mas e quando o óbvio já foi devidamente positivado tanto em âmbito constitucional quanto em âmbito legal e, mesmo assim, há o descumprimento dessas normas? O que fazer? Essa foi a mais nova celeuma que, por questões políticas, acaba por afetar a imunidade religiosa. Explica-se.

A Constituição Federal, disciplinava, na alínea “b” do inciso VI de seu artigo 150, que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto”. Após a Reforma Tributária (Emenda Constitucional nº 132/2023, oriunda da Proposta de Emenda à Constituição nº 45/2019), essa imunidade passou a ser ainda mais ampla, visto que a alínea “b” do inciso VI do artigo 150 da Carta Magna passou a disciplinar que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes”.

Essa imunidade é reforçada, inclusive, pelo § 1º-A do artigo 156 da Constituição (incluído pela Emenda Constitucional nº 116/2022) que, além da imunidade ampla, há imunidade religiosa também quanto ao Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana – IPTU, visto que o referido diploma constitucional dispõe que o IPTU “não incide sobre templos de qualquer culto, ainda que as entidades abrangidas pela imunidade de que trata a alínea "b" do inciso VI do caput do art. 150 desta Constituição sejam apenas locatárias do bem imóvel”.

A medida acima sequer seria necessária, visto que já é concedida imunidade ampla aos templos religiosos. Contudo, em razão de os Fiscos Municipais comumente exigirem que templos recolham IPTU sobre o imóvel que é locado pela instituição religiosa, foi necessário legislar sobre o óbvio.

Além disso, há a possibilidade de a entidade religiosa também se caracterizar como instituições de assistência social e, em assim o sendo, ela faz jus à imunidade também das contribuições, por força do § 7º do artigo 195 que disciplina que “[s]ão isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei”.

Apesar dessa disposição expressa em favor das entidades de assistência social, as instituições religiosas também fazem jus à imunidade de contribuições, visto a alínea “b” do inciso VI de seu artigo 150 da Constituição concede imunidade ampla de impostos a templos, sendo que essa imunidade pode ser estendida a contribuições, visto que a interpretação constitucional não é e nem precisa ser literal. Muito pelo contrário.

A interpretação da alínea “b” do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal deve ser uma interpretação conforme o inciso VI do artigo 5º da Carta Magna, que disciplina que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”[2].

Tanto isso é verdade que, em respeito à imunidade religiosa, a Lei nº 8.212/1991, que dispõe sobre a seguridade social e seu plano de custeio, é expressa, no § 13 de seu artigo 22, ao disciplinar que “[n]ão se considera como remuneração direta ou indireta, para os efeitos desta Lei, os valores despendidos pelas entidades religiosas e instituições de ensino vocacional com ministro de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa em face do seu mister religioso ou para sua subsistência desde que fornecidos em condições que independam da natureza e da quantidade do trabalho executado”.

Ou seja, legalmente, os valores pagos pelas instituições religiosas a seus líderes (padres, pastores, bispos, presbíteros etc.) não integram a base de cálculo das contribuições previdenciárias instituídas por meio dos incisos I a III do artigo 22 da Lei nº 8.212/1991, visto que o próprio artigo 22, em seu § 13, normatiza em âmbito infraconstitucional a imunidade religiosa da alínea “b” do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal, sendo vedada a exigência das contribuições previdenciárias sobre esses montantes.

Ocorre que, apesar de sua vedação expressa, Agentes Fiscais do Fisco Federal comumente exigiam de entidades religiosas o recolhimento das contribuições previdenciárias sobre as denominadas “prebendas” (que são os pagamentos realizados a líderes religiosos para a sua subsistência), o que resultou, em agosto/2022, na edição, pela Receita Federal do Brasil, do Ato Declaratório Interpretativo (“ADI RFB”) nº 1/2022 que acabou por reforçar o disposto no § 13 do artigo 22 da Lei nº 8.212/1991.

E, mais uma vez, houve a necessidade de se normatizar o óbvio.

Frise-se que o ADI RFB nº 1/2022 em nada inovou. Muito pelo contrário. Seu artigo 1º, inclusive, parece um ato de “copia e cola” do § 13 do artigo 22 da Lei nº 8.212/1991, já que dispõe que “[o]s valores despendidos pelas entidades religiosas e instituições de ensino vocacional com ministros de confissão religiosa, com os membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, em face do mister religioso ou para a subsistência, não são considerados como remuneração direta ou indireta, nos termos do § 13 do art. 22 da Lei nº 8.212, de 1991”.

Apesar de o ADI RFB nº 1/2022 ser um ato que está em conformidade tanto com a Lei nº 8.212/1991 quanto com a Constituição Federal, em 17 de janeiro de 2024 foi publicado pela Receita Federal o Ato Declaratório Executivo (“ADE RFB”) nº 1/2024, que consigna que “[f]ica suspensa a eficácia do Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 1, de 29 de julho de 2022”.

Segundo o que foi noticiado, como se vê em matéria do Valor Econômico[3], a Receita Federal teria adotado tal medida em cumprimento a uma determinação do Tribunal de Contas da União (“TCU”). Contudo, o TCU não demorou a se manifestar e desmentiu a informação da RFB, dizendo que não avaliou se a medida do ADI RFB nº 1/2022 seria ou não ilegal ou inconstitucional, conforme matéria do Valor Econômico[4], razão pela qual não houve determinação do TCU para que a RFB revogasse a medida.

Independentemente de a medida ter sido determinada pelo TCU ou não, o que deve se ter em mente é que o ADI RFB nº 1/2022 estava em linha, em ampla conformidade, com o § 13 do artigo 22 da Lei nº 8.212/1991 e em respeito à imunidade da alínea “b” do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal. Por conta disso, o ADE RFB nº 1/2024, ao suspender a eficácia do ADI RFB nº 1/2022, acaba por ser inconstitucional e ilegal. Explica-se.

Ao suspender a eficácia do ADI RFB nº 1/2022, o ADE RFB nº 1/2024 expõe a intenção de se cobrar contribuições previdenciárias sobre os pagamentos realizados a líderes religiosos, exigindo que as instituições religiosas incluam tais valores nas bases de cálculo das referidas contribuições.

Ocorre que, ao assim desejar, tem-se evidente a inconstitucionalidade do ADE RFB nº 1/2024, visto o desrespeito à imunidade religiosa da alínea “b” do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal, por se tributar, por via indireta, a atividade religiosa que é exercida pela instituição por meio de seus líderes.

E, além disso, ao assim desejar, tem-se evidente a ilegalidade do ADE RFB nº 1/2024, visto o desrespeito à disposição do § 13 do artigo 22 da Lei nº 8.212/1991, que é expresso ao consignar que “[n]ão se considera como remuneração direta ou indireta, para os efeitos desta Lei, os valores despendidos pelas entidades religiosas e instituições de ensino vocacional com ministro de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa em face do seu mister religioso ou para sua subsistência desde que fornecidos em condições que independam da natureza e da quantidade do trabalho executado”.

O que se vê com isso é que o Fisco Federal, por meio do ADE RFB nº 1/2024, deseja tributar as atividades que são exercidas pelas instituições religiosas, visto que o templo, sozinho, não exerce qualquer trabalho “espiritual”, sendo necessária a atuação de seus líderes para que a mensagem daquela entidade religiosa seja transmitida e o ato de livre culto seja realizado, o que viola a alínea “b” do inciso VI do artigo 150 da Constituição e o § 13 do artigo 22 da Lei nº 8.212/1991, além de desrespeitar a liberdade religiosa que é assegurada no inciso VI do artigo 5º da Carta Magna.

Assim sendo, é de se esperar que o Poder Judiciário venha a declarar a inconstitucionalidade e a ilegalidade do ADE RFB nº 1/2024 para que seja respeitado o direito à liberdade religiosa e a imunidade concedida a templos de culto.

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[1] ROMANO, Bruno. Quando é preciso legislar sobre o óbvio. São Paulo: Escola Brasileira de Tributos. 10 de janeiro de 2024

[2] Frise-se que, em diversas oportunidades, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) interpretou as imunidades constitucionais de maneira extensiva (não literal), como é o caso da imunidade concedida a e-books ou da imunidade concedida à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (“ECT”).

[3] Valor Econômico. Receita diz seguir determinação do TCU e corta isenção a líderes religiosos. 17 de janeiro de 2024

[4] Valor Econômico. TCU contradiz Receita e nega haver decisão sobre isenção de impostos sobre salários de pastores. 17 de janeiro de 2024

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Sobre o autor:

Bruno Romano é advogado tributarista, Professor do IBET/SP e da APET; Mestre em Direito Tributário pelo IBET; é pós-graduado em Direito Tributário pelo IBDT; tem extensão em Teoria Geral do Direito, em ICMS, em Contabilidade e em Processo Tributário pelo IBET; tem extensão em Tributação Indireta e em Contabilidade pelo IET; é bacharel em Direito pelo Mackenzie e bacharelando em Contabilidade pela Trevisan; e-mails: bruno.romano2000@gmail.com e bruno.romano@adv.oabsp.org.br.

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